Quais direitos trans ainda dependem de decisões judiciais?

Apesar dos avanços obtidos nos últimos anos, pessoas trans no Brasil ainda enfrentam grandes obstáculos na garantia plena de seus direitos. Muitas conquistas vieram por meio do ativismo e de decisões judiciais que reconheceram situações de vulnerabilidade e exclusão. No entanto, a ausência de legislação específica e clara faz com que diversos direitos da população trans continuem dependendo da interpretação do Judiciário. Em outras palavras, muitos direitos não estão garantidos automaticamente por lei e precisam ser pleiteados individualmente nos tribunais.

Um exemplo marcante dessa realidade é o acesso à saúde integral e adequada para pessoas trans, especialmente no que diz respeito à hormonização e cirurgias de redesignação sexual. Embora o SUS (Sistema Único de Saúde) ofereça esse tipo de tratamento por meio do Processo Transexualizador, o acesso é limitado a poucos centros no país e enfrenta filas longas, além de entraves burocráticos. Pessoas que não conseguem atendimento público muitas vezes precisam acionar a Justiça para garantir que o Estado arque com os custos dos tratamentos, alegando o direito à saúde e à dignidade.

Outro direito que frequentemente esbarra na ausência de regulamentação legal é o da retificação de nome e gênero em todos os registros e documentos, como diploma universitário, registros escolares, históricos médicos, contratos anteriores, entre outros. Após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2018, ficou reconhecido que a pessoa trans tem o direito de alterar nome e gênero no registro civil sem necessidade de cirurgia ou decisão judicial. No entanto, essa mudança ainda não é respeitada de forma uniforme em instituições públicas e privadas, sendo comum que trans sejam obrigados a recorrer à Justiça para garantir que suas identidades sejam reconhecidas nesses documentos.

A situação é ainda mais delicada para pessoas trans menores de idade. Atualmente, adolescentes trans só conseguem fazer a retificação do registro civil mediante autorização judicial, mesmo com o apoio dos responsáveis legais. Essa dependência do Judiciário pode expor os jovens a situações de constrangimento e reforça a invisibilização de suas identidades. Além disso, nem sempre juízes e promotores têm capacitação para lidar com o tema, o que pode levar a decisões desinformadas ou conservadoras.

Outra questão relevante é o direito à privacidade e proteção contra a discriminação em ambientes escolares e profissionais. Embora a Constituição Federal assegure a dignidade da pessoa humana e proíba qualquer forma de discriminação, ainda não existe uma lei específica que trate da transfobia como crime de forma clara e abrangente. Em 2019, o STF decidiu que a homofobia e a transfobia devem ser enquadradas na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), mas essa decisão ainda precisa ser internalizada por instituições como delegacias, escolas, empresas e órgãos públicos. Isso significa que muitas vezes as vítimas de violência ou exclusão precisam buscar a Justiça para ter acesso a reparações ou garantir seus direitos básicos.

A utilização de banheiros e vestiários conforme a identidade de gênero também é um direito frequentemente negado e que acaba sendo judicializado. Muitas escolas, academias, empresas e órgãos públicos ainda impõem restrições ao uso desses espaços, o que obriga pessoas trans a enfrentarem constrangimentos ou até deixarem de frequentar determinados locais. Sem uma legislação clara que assegure esse direito, muitas pessoas recorrem ao Judiciário para garantir o livre uso de banheiros compatíveis com sua identidade de gênero.

Outro ponto sensível é a inclusão de pessoas trans em concursos públicos, cotas e políticas afirmativas. Em geral, não há diretrizes que orientem a inclusão dessa população de forma específica, o que leva à exclusão indireta em muitos processos seletivos. Há iniciativas pontuais, como o projeto Transcidadania na cidade de São Paulo ou editais universitários com cotas para pessoas trans, mas a maioria dessas ações depende de vontade política local ou decisões judiciais, e não são obrigatórias em nível nacional.

Também não existe, até hoje, uma legislação trabalhista específica que garanta proteção contra a discriminação por identidade de gênero. Casos de demissão motivada por transfobia, por exemplo, ainda são difíceis de comprovar e muitas vezes demandam ações judiciais prolongadas para garantir alguma forma de reparação.

Por fim, vale destacar que o direito à maternidade ou paternidade de pessoas trans também esbarra em lacunas legais. Pessoas trans que engravidam ou têm filhos enfrentam dificuldades para serem reconhecidas como mães ou pais nos registros civis, tendo que recorrer ao Judiciário para corrigir certidões ou garantir guarda e direitos parentais.

Em resumo, embora o Judiciário tenha sido um aliado importante na conquista de direitos da população trans, o fato de tantos direitos dependerem de decisões judiciais demonstra que a legislação brasileira ainda está atrasada e omissa. Isso impõe uma realidade injusta: o acesso à cidadania plena depende da sorte, do local onde se vive, da atuação de advogados e da boa vontade de juízes.

Para mudar esse cenário, é urgente que o Congresso Nacional aprove leis específicas de proteção e promoção dos direitos das pessoas trans, garantindo segurança jurídica, igualdade de oportunidades e respeito à diversidade.

Cidadania não pode depender de sentença judicial.

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